Uma resolução do Conselho Federal de Psicologia do final da década de 90 estabelece normas claras para a atuação dos profissionais no que se refere à orientação sexual de indivíduos. O documento, inclusive, veda práticas que proponham a “reorientação” das sexualidades de pacientes. Isso se deve ao fato verificado de que a sexualidade integra diretamente a identidade de um ser humano. Conforme especificado pela resolução após décadas de estudos, “a forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve ser compreendida na sua totalidade”.
Em resumo: querer que alguém mude sua orientação sexual (leia-se ‘orientação’, e não ‘opção’ sexual, uma vez que ninguém opta por ser hétero ou gay) é tentar alterar diametralmente sua essência natural. É como tentar fazer, por meio de coação, que um sapo, por exemplo, pare de pular e passe a andar sobre duas pernas, ou que um tigre passe a comer folhas e frutos no lugar de carne.
O responsável por uma mudança pode até chegar, por algum tempo, a ver o animal alvo do teste aderindo a um comportamento contrário à sua essência – para, logo em seguida, começar a agonizar, sofrer e padecer até morrer.
Tentar alterar a sexualidade de um indivíduo, como já mostrado pela ciência, é matar sua identidade e, consequentemente, o próprio indivíduo. Flávia Caroline de Andrade Eller, mais conhecida como Karol Eller, parece ter sido uma das últimas vítimas conhecidas dessa atrocidade.
Lésbica assumida, Karol era usada como um trunfo de apoiadores bolsonaristas para provar que Jair Bolsonaro – condenado pela Justiça em segunda instância por declarações homofóbicas – não é homofóbico. A influencer LGBT era uma clara apoiadora do ex-presidente, fazendo coro frequentemente ao discurso de que Bolsonaro não era homofóbico, mas simplesmente crítico ao “ativismo LGBT”.
O problema, é que após anos rodeada pelo discurso de que, sim, a “homossexualidade poderia ser curada”, argumento esse que partia de seus próprios “amigos” conservadores, Karol acabou acreditando nisso.
No início de setembro deste ano, a influencer participou de um retiro religioso e anunciou que havia “renunciado à prática homossexual”. Na última semana, ela foi encontrada morta.
Seus amigos conservadores, é claro, correram para se eximir de toda e qualquer culpa. Enquanto um senador lamentou a morte dizendo que “Deus havia preparado um varão para Karol”, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, em resposta à afirmação do ex-apresentador Tiago Pavinatto de que “a causa da morte da influenciadora foi sua ingressão no processo de reorientação sexual”, escreveu: “Nossa Karol sofria de depressão decorrente de uma vida de abusos. Jesus tem uma forma especial e particular para tratar os Seus filhos.”
Sim, Ele tem, querida Michelle, e forçar uma pessoa a lutar contra sua essência para que ela morra em sofrimento, em nome do conservadorismo humano, não se encaixa nessa forma. Os abusos sofridos por uma pessoa podem torturá-la para o resto da vida, e fazê-la saber que esse abuso não foi culpa dela e sim do abusador, que ela é lésbica porque é simplesmente sua orientação sexual, e não porque foi abusada, que ela pode ter a ajuda de amigos e profissionais competentes para que ela siga em frente, no lugar de “Renuncie à sua sexualidade, porque você vai para o inferno”, pode ser um determinante para que aquela pessoa não desista de lutar pela vida.
Infelizmente, não foi o caso Karol. O que resta é esperar que, um dia, os mesmos amigos que a incentivaram a viver em sofrimento se deem conta de qual foi o real efeito disso, não só para Karol, mas para todos que a amavam como ela era, e não como eles queriam que ela fosse.